"Por que não denunciou antes?"
Sobre assédio, mandato da masculinidade e a importância de se ter consciência da própria classe sexual [aviso de gatilho]
O caso do Ministro e as denúncias de assédio
Na última semana, vimos a repercussão do caso de assédio por parte do ministro Sílvio Almeida. Apenas no ministério, foram 10 denúncias de assédio moral e quatro denúncias de assédio sexual. Uma das vítimas é a ministra Anielle Franco. Para além do ocorrido, a revista Veja fez uma reportagem afirmando que estudantes da universidade São Judas, instituição em que Sílvio deu aula, também denunciaram o professor por assédio. Ainda assim, mesmo com uma série de denúncias, pessoas de esquerda e setores do movimento negro completamente desacreditados da palavra das vítimas fizeram dezenas de colocações revitimizando as mulheres que sofreram a violência por parte do ministro.
Muitos comentários feitos nas redes sociais tinham um tom conspiratório que se assemelhava ao Bolsonarismo: “manobra de ONG estadunidense”, “golpe para enfraquecer o governo Lula”, “união de mulheres pagas para derrubar o ministério dos direitos humanos”, “golpe de mulheres brancas” entre outras colocações ainda piores que não desejo reproduzir… falou-se de tudo, menos no acolhimento das vítimas, na preservação de suas identidades e na tentativa de não revitimizar aquelas que já haviam sofrido uma violência por parte de um homem que é uma figura de poder e autoridade.
Uma das linhas argumentativas que mais vi sendo utilizadas foi a de desacreditar as vítimas. Uma fala específica ficou martelando na minha cabeça: “Por que não falaram antes?”
Bem, vou contar para vocês sobre um caso pessoal, mas antes, vamos às definições apresentadas pela Controladoria-Geral da União.
O assédio pode ser configurado como condutas abusivas exaradas por meio de palavras, comportamentos, atos, gestos, escritos que podem trazer danos à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo o seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho.
No site do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o assédio moral é definido da seguinte forma: “toda conduta abusiva, a exemplo de gestos, palavras e atitudes que se repitam de forma sistemática, atingindo a dignidade ou integridade psíquica ou física de um trabalhador”.
O Ministério Público do Trabalho, em parceria com a Organização Internacional do Trabalho, na cartilha “Assédio Sexual: Perguntas e Respostas”, define o assédio sexual no ambiente de trabalho como “a conduta de natureza sexual, manifestada fisicamente, por palavras, gestos ou outros meios, propostas ou impostas a pessoas contra sua vontade, causando-lhe constrangimento e violando a sua liberdade sexual”.
Vamos à história: Ao longo de alguns anos, eu sofri assédio moral no ambiente de trabalho por parte de um homem específico. Aquela oportunidade era recorrentemente vendida como a “chance da minha vida” e, apesar de já ler sobre feminismo, eu era muito nova e não tinha letramento suficiente para entender que aquilo que ocorria comigo e com minhas colegas era assédio e, para além disso, que era um ambiente misógino.
Como se tratava de um ambiente acadêmico, as bolsas para viagens internacionais eram frequentemente prometidas às pesquisadoras mulheres e, então, oferecidas aos pesquisadores homens, ainda que elas fossem as pessoas que mais contribuíssem para a escrita do artigo. Esses jogos de poder atrapalhavam o desempenho e a saúde mental das pesquisadoras. Para além disso, todos os dias, era demandado que eu fizesse o café. Se eu não estava, a função era designada para outra pesquisadora.
A carga de trabalho designada para pesquisadoras mulheres era maior do que para homens. Recebíamos ligações no final de semana, sofríamos ameaças de sermos retiradas do grupo - que seria a nossa grande oportunidade acadêmica - e, se não conseguíamos terminar todas as atividades, éramos humilhadas em tom de risada pelo coordenador na reunião semanal. Havia professoras mulheres na reunião, mas elas raramente falavam alguma coisa, até porque elas também eram vítimas de humilhações. Este mesmo professor, que entrava como autor em todos os artigos, não escrevia nada. Apenas colocava o nome dele no trabalho feito pelas alunas da graduação. Uma das alunas, inclusive, afirmou para as colegas ter sofrido assédio sexual também.
Quando discutíamos a situação com os colegas homens, eles diziam que “era o jeitão dele” ou que “assim era feito lá, não era para fracos”. Eles nunca nos incentivaram a denunciar ou prestaram qualquer acolhimento. Ninguém nunca o denunciou formalmente.
E aí, você pode questionar: “por que não falaram nada?”. Ou então, se em alguns anos, alguma das pesquisadoras decidir falar algo, pode perguntar “por que falou só agora?”.
Eu te conto o porquê.
Tínhamos provas, testemunhas oculares das reuniões, relatos que não se restringem a uma vítima. Tudo aquilo que poderia embasar a denúncia. Contudo, estamos falando de um professor consideravelmente importante em sua área de atuação, que advém do exterior e tem contatos nas principais universidades do Norte Global e que é considerado por muitos como uma pessoa carinhosa e inspiradora. Se fizéssemos uma denúncia na própria universidade, quem receberia as informações seria um amigo dele e, assim, o caso seria encerrado, nós seriamos prejudicadas pelo agressor e nada iria mudar, apenas nossas vidas - para pior.
Essa história não se restringe a mim, mas é reproduzida em diferentes contextos familiares, acadêmicos e profissionais. No caso de violências sexuais, inclusive, o Anuário de Segurança Pública 2024 demonstra que a maior parte dos agressores é familiar da vítima. A professora Valeska Zanello dedicou sua tarde de domingo a compartilhar nos seus stories relatos de seguidoras sobre assédios morais e sexuais. Ela salvou a coletânea de prints num destaque. Indico conferir, mas não recomendo ver tudo, porque é de chorar.
Assim, cabe reforçar minha posição aqui sobre o caso do ministro. Todas as pessoas tem direito à presunção de inocência, principalmente em um caso que se trata de uma pessoa negra em um país estruturalmente racista e que, como ocorre em outros países que foram atravessados pelo regime escravocrata, possui historicamente a construção do mito do negro estuprador. Angela Davis é uma das autoras que discute a pauta1.
Todavia, eu sempre terei uma política de acolhimento com as vítimas e acreditarei em suas denúncias, afinal, na maioria esmagadora dos casos, mulheres só têm a perder nas esferas pessoais e profissionais ao denunciarem um assediador. Se a denúncia é feita, a chance de ele ser verdade é muito, mas muito alta. Mulheres que denunciam casos de assédio, ainda mais se tratando de uma figura poderosa, têm sua sanidade questionada, seu relato distorcido e sua existência massacrada.
É a partir desta constatação que inicio a segunda parte desta newsletter.
A importância de se ter consciência da própria classe sexual
Há algumas décadas, existe uma série de discussões acerca da hierarquia de opressões. Eu, pessoalmente, acho esse debate pouco produtivo, tendo em vista que uma mulher negra não pode tirar sua raça para lidar com seu sexo ou tirar seu sexo para lidar com sua raça: ela é mulher e negra o tempo inteiro.
Nesse sentido, é fundamental que mulheres negras tenham consciência da sua classe racial e da sua classe sexual. Contudo, alguns trabalhos e movimentos recentes pautados nas hierarquias de opressão promovem a invisibilização do impacto do patriarcado no corpo e na vida das mulheres negras, como se fosse o sexo fosse uma opressão secundária na vida dessas mulheres ou propondo que homens negros não seriam responsáveis pelas agressões feitas por eles mesmos.
Ora, é óbvio que as socializações - tanto feminina com masculina - possuem atravessamentos raciais, de classe econômica e até territoriais. Porém, é inegável que elas existem e criam hierarquias entre os sexos em todas as sociedades contemporâneas, uma vez que o patriarcado está globalizado. Rita Segato chega nesta conclusão ao observar tanto alguns povos indígenas brasileiros como também sociedades africanas iorubás2.
A partir dessa constatação, Segato cunha um conceito fundamental para compreendermos as hierarquizações entre sexo e as violências contra as mulheres que ocorre de maneira globalizada: o mandato de masculinidade.
O mandato de masculinidade se refere às normas e expectativas sociais atreladas aos homens que possibilitam as hierarquias entre sexos. Esse mandato é uma das bases que sustentam as estruturas patriarcas e é constantemente reforçado e reproduzido através de atos de violência e dominação que “provam” a virilidade e autoridade dos homens.
Esse conceito também indica que de que a masculinidade é uma construção cultural e histórica, que depende da reafirmação constante em contextos de poder e violência. Assim, o poder masculino é legitimado a partir da subordinação das mulheres.
As práticas de assédio são um exercício do mandato de masculinidade, uma vez que explicitam a dominação masculina em um mundo patriarcal. Homens são violentos contra as mulheres porque podem, pois são autorizados pela nossa sociedade a violentar mulheres e enxergá-las como cidadãs de segunda classe.
Apenas na última semana, tivemos exemplos que demonstram o teor globalizado do patriarcado e da dominação masculina.
Rebecca Cheptegei, uma corredora ugandesa que participou da última edição das Olimpíadas, foi vítima de feminicídio. Ela estava saindo da igreja quando seu namorado ateou fogo na atleta. A violência ocorreu na frente das duas filhas da mulher3.
No regime do Talibã, mulheres do Afeganistão não poder trabalhar em determinados setores ou frequentarem as universidades. Nos últimos dias, uma nova modalidade de violência chegou na mídia: mulheres que haviam se divorciado estão sendo obrigadas a voltar a viver com os ex-maridos, inclusive mulheres vítimas de casamentos arranjados4.
Uma senhora francesa está processando o ex-marido. Ao longo de mais de uma década, o homem a dopava e chamava desconhecidos para estuprá-la. Mais de 50 homens são acusados de participar do abuso.5
O ministro dos Direitos Humanos do Brasil é acusado de assédio sexual e moral. As vítimas já passam de 10, desde membros do ministério até ex-alunas.
A violência masculina não tem raça, classe social ou nacionalidade. Ela é global e é baseada em nossa realidade material. MULHERES são violentadas, subordinadas, mortas e exploradas por HOMENS6
Por essa razão, é fundamental que tenhamos consciência de nossa classe sexual. Precisamos compreender que estamos em mundo patriarcal que nos vulnerabiliza e que cria condições para a dominação masculina. É urgente que mulheres compreendam que ao nascermos mulheres somos socialidades para uma posição de outridade social e, a partir dessa consciência, possamos agir em prol de uma mudança sistêmica que vise, de fato, a emancipação de todas as mulheres.
Perdemos?
Vi muitas pessoas falando sobre vencer ou perder referente ao caso do Sílvio Almeida. Tiveram até pessoas falando sobre luto. Acredito que, em caso de assédio e violências contra a mulher, essa perspectiva binária sobre casos específicos não contribui para o debate. Perdemos, enquanto sociedade, ao permitir as violências contra as mulheres.
Recados
Estamos lendo o livro Crítica da Colonialidade em 8 Ensaios, da Rita Segato, no Clube do Livro. Para participar, basta enviar um e-mail para manoelaveras13@gmail.com que eu passo as demais instruções. Nosso encontro será dia 08/10, às 10:15 da manhã. Espero vocês lá!
Hoje não temos indicações de filmes ou séries, mas reafirmo a sugestão de conferir o destaque sobre assédio sexual da professora Valeska Zanello.
Obrigada pela leitura, mulheres.
Vamos juntas.
Angela Davis analisa essa construção histórica em seu livro Mulheres, Raça e Classe. A resenha presente no link traz visibilidade para o exposto: https://periodicos.unb.br/index.php/SER_Social/article/download/14956/13274/25587
Ainda no início dos anos 2000, Rita Segato aponta que a conclusão do livro A Invenção das Mulheres, que afirma que não hierarquias entre os sexos na sociedade iorubá, é falsa. Para tanto, ela analisa tanto o livro como também aponta trabalhos de pesquisadoras conterrâneas à autora que contestam sua tese.
Cabe ressaltar, contudo, que quando observamos o perfil das vítimas, a questão racial e de classe econômica são agravantes. Ou seja, mulheres negras e pobres são a maioria das vítimas e estão mas suscetíveis a sofrer violências, como aponta o Anuário de Segurança Pública de 2024.
Muito bom e esclarecedor seu texto, me incomodou muito a quantidade de mulheres que vieram prontamente julgar as vitimas e defender os agressores