História, Escrita e o Anjo do Lar
Uma reflexão sobre a história das mulheres e o impacto do anjo do lar em nossa escrita
O texto de hoje é um pouco mais pessoal, ainda que vocês observem algumas referências nele, ainda que ele também fale da História das Mulheres.
Espero que gostem!
Quando comecei a estudar História das Mulheres, campo em que me insiro atualmente, me recordo que um dos primeiros livros que li foi “Minha História das Mulheres”, de Michelle Perrot. A obra é uma transcrição de um programa de rádio realizado em 2005 pela France Culture em que a historiadora sintetizou e divulgou essa história tão desconhecida para além da academia.
Nele, Michelle Perrot começa discutindo o silêncio rompido e a invisibilidade imposta à nossa classe sexual. Após relacionar o silenciamento com a contínua ausência de mulheres no espaço público, ela comenta:
“Porque são pouco vistas, pouco se fala delas. E esta é uma segunda razão de silêncio: o silêncio das fontes. As mulheres deixam poucos vestígios diretos, escritos ou materiais. Seu acesso à escrita foi tardio. Suas produções domésticas são rapidamente consumidas, ou mais facilmente dispersas. São elas mesmas que destroem, apagam esses vestígios porque os julgam sem interesse. Afinal, elas são apenas mulheres, cuja vida não conta muito. Existe até um pudor feminino que se estende à memória. Uma desvalorização das mulheres por si mesmas. Um silêncio consubstanciai à noção de honra.”
Quando o campo da História das Mulheres surge na década de 1960, há uma série de outros movimentos emergindo pela pluralização de sujeitos das pesquisas. Entre eles, encontra-se a História vista de baixo (ou história popular) que busca produzir conhecimento histórico a partir do ponto de vista de pessoas consideradas comuns, em oposição à história dos grandes políticos e líderes militares, que normalmente protagonizam o estudo do passado. Seu desenvolvimento simultaneamente à História das Mulheres é oportuno justamente por possibilitar que as mulheres comuns também se tornassem sujeitos de estudos do campo.
Nesse mesmo período, observa-se a intensificação dos debates acerca das fontes. Até o início do século XX, as fontes consideradas oficiais eram quase que exclusivamente os documentos escritos. Assim, como o acesso das mulheres à escrita e ao espaço público são tardios, há um déficit quantitativo nas fontes escritas por mulheres que são encontradas e preservadas ao longo do tempo. Na maior parte do tempo, o registro dos feitos das mulheres era feito de maneira oral, dentro de suas casas.
Isso ocorre até hoje. Pensem em suas avós e no diálogo entre as mulheres da família e as comadres. Em geral, a transmissão de conhecimento e de memórias entre mulheres costuma acontecer na cozinha1, entre um café e outro. Um espaço que difere e muito do âmbito público e dos documentos escritos tão adorados pelos historiadores tradicionais. É nesse sentido que a História Oral nasce como instrumento fundamental para a escrita da história das mulheres.
Contudo, para além do progresso simbolizado pela história vista de baixo e a história oral, o ponto que quero discutir aqui é muito mais íntimo e fala sobre a agência das mulheres: a nossa falta de autoestima intelectual. Aquilo que alguns chamam de “síndrome da impostora”, mas que não tem nada de patológico na sua existência. É apenas mais uma maquinação patriarcal para nossa subordinação.
Apesar dos avanços, a socialização feminina segue vigente e violenta com as meninas e mulheres. Somos educadas para o silêncio numa perspectiva que é replicada nas religiões, em grande parte das famílias e até mesmo nas escolas. Somos recorrentemente castradas. Tememos sermos chamadas de mandonas, de agressivas e de loucas. Para evitar tal signo vexatório, devemos nos comportar. Comportamento este pautado no controle de nossos atos, corpos e até pensamentos.
Essa pressão pelo “perfeito” através da socialização também é replicada em nossa escrita. Muitas mulheres possuem réguas de qualidade tão inalcançáveis que deixam de escrever por medo de não atingir as próprias métricas. E assim, deixam de fazer o registro daquilo que pensam e muitas até desistem de ingressar na academia por medo do poder que a caneta concentra.
Virginia Woolf fala sobre em seu texto Profissões para as Mulheres. Ela utiliza a figura do “Anjo do Lar” como metáfora para a socialização feminina:
[…] E, quando eu estava escrevendo aquela resenha, descobri que, se fosse resenhar livros, ia ter de combater um certo fantasma. E o fantasma era uma mulher, e quando a conheci melhor, dei a ela o nome da heroína de um famoso poema, “O Anjo do Lar”. Era ela que costumava aparecer entre mim e o papel enquanto eu fazia as resenhas. Era ela que me incomodava, tomava meu tempo e me atormentava tanto que no fim matei essa mulher.
Vocês, que são de uma geração mais jovem e mais feliz, talvez não tenham ouvido falar dela – talvez não saibam o que quero dizer com o Anjo do Lar. Vou tentar resumir. Ela era extremamente simpática. Imensamente encantadora. Totalmente altruísta. Excelente nas difíceis artes do convívio familiar. Sacrificava-se todos os dias. Se o almoço era frango, ela ficava com o pé; se havia ar encanado, era ali que ia se sentar – em suma, seu feitio era nunca ter opinião ou vontade própria, e preferia sempre concordar com as opiniões e vontades dos outros. E acima de tudo – nem preciso dizer – ela era pura. Sua pureza era tida como sua maior beleza – enrubescer era seu grande encanto. Naqueles dias – os últimos da rainha Vitória – toda casa tinha seu Anjo.
E, quando fui escrever, topei com ela já nas primeiras palavras. Suas asas fizeram sombra na página; ouvi o farfalhar de suas saias no quarto. Quer dizer, na hora em que peguei a caneta para resenhar aquele romance de um homem famoso, ela logo apareceu atrás de mim e sussurrou: “Querida, você é uma moça. Está escrevendo sobre um livro que foi escrito por um homem. Seja afável; seja meiga; lisonjeie; engane; use todas as artes e manhas de nosso sexo. Nunca deixe ninguém perceber que você tem opinião própria. E principalmente seja pura.”
O Anjo do lar recorrentemente tenta nos roubar a caneta e rasgar nosso papel. Ele nos ensina que a mediocridade é um privilégio masculino ao passo que a perfeição é uma demanda feminina, uma vez que as mulheres estariam ingressando em um terreno que lhes foi negado ao longo da história e que, por isso, não as pertenceria. É sob essa luz que Michelle Perrot é certeira ao dizer que o apagamento e o silenciamento das mulheres não é apenas uma atividade masculina. Nós internalizamos as construções sociais que o patriarcado cria sobre nós e replicamos sua violência contra nossa escrita: “Uma desvalorização das mulheres por si mesmas. Um silêncio consubstanciai à noção de honra.”
Eu sou uma vítima disso.
Desde criança, eu gosto de escrever. Escrevia histórias e, posteriormente, crônicas. Gostava muito de relatar meu dia e meus pensamentos em diários, tendo a certeza que nunca permitiria que ninguém lesse minhas palavras, ainda que meus pais sempre me incentivaram a escrever. Eventualmente, rasgava cadernos e jogava minha produção no lixo. Em alguns momentos, até queimei diários por entender que sua existência era insignificante. Eu odiava minha escrita ao mesmo tempo que sentia que precisava escrever para me sentir viva.
Assim mantive minha postura até os catorze anos, quando permiti que uma professora de português lesse uma crônica minha. Ela gostou muito e me convidou para escrever roteiros para o grupo de teatro juvenil dela. Foi a partir do incentivo de uma mulher que eu admirava que comecei a permitir que outras pessoas lessem aquilo que escrevo. Desde então, não fiz mais fogueiras das minhas palavras, apesar de tentativas alheias de fazê-las.
Mesmo com esse avanço, há dias que vejo as asas do Anjo do Lar voltarem a fazer sombra no meu papel. Ele sussurra em meu ouvido que preciso ser menos afiada em minhas palavras, evitando divergências com quem “detém” o conhecimento. Ele me oferece borrachas a cada crítica que realizo, seja aqui ou na minha dissertação.
Nesses dias, recorro àquelas que vieram antes de mim e que mataram Anjos do Lar muito maiores dos que o meu. Leio Virginia Woolf, Gerda Lerner, Audre Lorde, Clarice Lispector, Lélia Gonzalez e tantas outras que desafiaram os silenciamentos impostos. Repito para mim mesma o conselho de de Lorde: “seu silêncio não te protegerá”. Escrevo em um post it o que Lélia ensina: “o risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações”, como se a força e a coragem de cada palavra pudesse ser transferida para minhas mãos através da caneta.
Assim, lembro que autocrítica exacerbada das mulheres não é por acaso, mas parte de um projeto histórico e político muito bem pensado para nossa subordinação. Eu não serei mais um peão no jogo do nosso apagamento.
Escrevo, apesar de tudo.
Recados
O Insubordinadas 2025 está com as inscrições abertas! O tema anual é A Criação da Consciência Feminista.
As obras lidas serão:
jan: Minha História das Mulheres, Michelle Perrot
fev/mar: A Criação do Patriarcado, Gerda Lerner
abr: E eu não sou uma mulher?, bell hooks
mai: Mulheres, Raça e Classe, Angela Davis
jun/jul: Por um feminismo afro-latino-americano, Lélia Gonzalez
ago: Sou sua irmã, Audre Lorde
set: Contra nossa vontade, Susan Brownmiller
out: Amar para sobreviver, Dee L. Graham
nov: Pornland, Gail Dines
dez: Além da pele, Silvia Federici
O investimento é de 50 reais mensais. Teremos 3 turmas:
encontros presenciais na Latinas Livraria (Florianópolis) na noite da última terça-feira de cada mês .
encontros on-line na primeira terça-feira de cada mês (19h).
encontros on-line no primeiro sábado de cada mês (10h).
As vagas são limitadas e mais da metade já foi preenchida. Para saber mais acesse o instagram ou meu site.
Para se inscrever, preencha o formulário: https://forms.gle/6GSfJPqJk3PeViBr8
Vamos juntas e insubordinadas!
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