Olá, mulheres.
Em fevereiro e março, o livro lido no Insubordinadas foi a Criação do Patriarcado, da pioneira da História das Mulheres Gerda Lerner. Recentemente, li em um post da profa
que foi Lerner quem encabeçou a luta pela criação do mês da história das mulheres nos Estados Unidos, celebrado em conjunto com o mês da luta pelos direitos das mulheres. Além disso, Gerda também é reconhecida como uma das pioneiras do campo da História das Mulheres nos EUA. Por essa razão, desde 1992, o prêmio Lerner-Scott é concedido à melhor tese de doutorado sobre História das Mulheres nos Estados Unidos1.Conhecer e valorizar o legado de Gerda Lerner é fundamental, principalmente em um período em que a história das mulheres e os estudos sobre as mulheres vêm sofrendo ataques e invisibilizações. Além de Lerner, centenas de outras mulheres do Norte ao Sul Global se debruçaram sobre a compreensão dos silenciamentos impostos historicamente à nossa classe sexual. Seus trabalhos foram fundamentais para que a teoria feminista não fosse a-histórica, ou seja, não replicasse mitos relacionados à naturalização da subordinação feminina ou do patriarcado enquanto sistema. Ao revisitarmos o passado e conhecermos momentos de maior igualdade entre os sexos, é possível compreender como a dominação masculina se estabeleceu e como podemos combatê-la.
Contudo, para além do reconhecimento da importância desse campo do saber para a teoria feminista e para a historiografia como um todo, há outro tópico que eu gostaria de discutir no texto de hoje: a fala das mulheres. Promovendo uma analogia com a opressão racial, há um trecho no artigo “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira” em que Lélia Gonzalez bebe da psicanálise lacaniana para comentar o silenciamento da população negra no Brasil.
“O risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as implicações. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados (infans é aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque é falada pelos adultos), que neste trabalho assumimos nossa própria fala”.
O fenômeno da infantilização pode ser percebido também na história das mulheres. Se seguirmos a cronologia de Gerda Lerner, o patriarcado, ou seja, o sistema de dominância masculina, tem mais de 5 mil anos. Nesse ínterim, a exclusão das mulheres do processo de escrita da história, seja como autoras ou como personagens de relevância, possibilitou que muito fosse falado sobre nós, mas pouco do que nós falávamos fosse escutado.
Os mecanismos patriarcais de silenciamento das mulheres foram múltiplos. N’A Criação do Patriarcado, Gerda Lerner demonstra, por exemplo, como as Deusas-Mães destronadas para a ascensão de um Deus-Homem em diversas religiões prévias ao monoteísmo. Com a ascensão do Judaísmo e do Cristianismo, nossa desvalorização simbólica se tornou ainda maior, uma vez que, em questão de poucos séculos, passamos de figuras atreladas ao poder da reprodução e da vida para sermos apenas um receptáculo da semente do homem:
“[…] é lógico e esperado que em uma sociedade patrilinear a linhagem familiar seja traçada através do pai, mas a questão é que essa maneira metafórica de ordenar parentesco foi transformada de alguma maneira em uma declaração contrafatual sobre a realidade: não só o traçado da linhagem, mas a própria procriação foi transformada em um ato masculino. Não há mães envolvidas nisso”.
Posteriormente, Lerner adiciona:
“Define-se, portanto e com clareza, a procriação como emanada de Deus, que abre o ventre das mulheres e abençoa as sementes dos homens. Sendo assim, ainda que dentro da referência patriarcal, honra-se a função procriadora de esposa e de mãe”.
A desvalorização da mulher por meio da religião logo acarretou no seu silenciamento também. Eva é culpada pel’A Queda e todas nós pagamos por seu ato por meio do silêncio, como a historiadora de Mulheres Michelle Perrot expõe:
“‘Que a mulher conserve o silêncio, diz o apóstolo Paulo. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi Adão que foi seduzido, mas a mulher que, seduzida, caiu em transgressão.’ Elas devem pagar por sua falta num silêncio eterno”.
Essa perspectiva religiosa, aliada a uma filosofia e a uma ciência também misóginas, são as bases da formação do pensamento Ocidental. Desse modo, o silenciamento das mulheres e o seu processo de infantilização é um componente estrutural da cultura, da civilização e dos conhecimentos que nos cercam e nos moldam. Entre eles, também está a História.
Em um cenário mais recente, a infantilização das mulheres também se fez muito presente. Entre o final do século XIX e o início do século XX, enquanto mulheres buscavam o sufrágio feminino no Brasil, argumentações misóginas eram feitas em jornais e na política de maneira a contestar a capacidade das mulheres de exercer o voto.
Entre elas, estaria sua capacidade intelectual inferior à do Homem, replicando argumento aristotélicos de subordinação das mulheres. O Deputado Lacerda Coutinho, de Santa Catarina, resumiu a mentalidade de muitos homens na época em uma fala realizada na Assembleia Constituinte de 1891: “predominam no sexo masculino as faculdades intelectuais, predominam no feminino as afetivas”. Nas décadas seguintes, outras mudanças legais explicitaram o status de infans das mulheres. Elas precisavam de autorização do marido ou, se fossem solteiras, do pai para viajar e até para trabalhar no mercado formal.
O que desejo discutir neste texto não são apenas os obstáculos impostos à nossa fala e à nossa autonomia historicamente, mas também a relevância de compreendermos os mecanismos patriarcais de silenciamento e nosso papel no tempo histórico em que nascemos. Djaimilia Pereira de Almeida diz em um dos artigos do seu livro “O que é ser uma escritora negra hoje, de acordo comigo” uma frase que cabe para todas as mulheres, ainda que de formas diferentes por conta de suas particularidades de classe, raciais e de sexualidade: “a data do meu nascimento é meu maior privilégio”.
Nascemos em um período em que podemos usufruir das conquistas de direitos oriundas do século XX. Podemos estar no mercado de trabalho, nas universidades e na linha de frente da contestação do patriarcado, ainda que enfrentemos desafios imensuráveis nesses espaços. Também usufruímos da História das Mulheres, uma área recente que nos mostra que, até poucas décadas atrás, fomos ludibriadas em um ato perverso dos homens de nos excluírem da escrita de uma História em que, na realidade, fomos agentes tão relevantes quanto eles.
O tempo de hoje permite que usemos nossas vozes na criação de novos conhecimentos e teorias para explicar o mundo de maneira totalitária, sem ignorar 50% da humanidade como a maioria esmagadora dos pensadores homens que nos precederam fizeram. Hoje, ainda que vivenciemos nossa classe sexual de maneiras diferentes e particulares, temos mais possibilidades de denunciar a opressão que está posta e amplamente banalizada. Estamos, pouco a pouco, recusando o papel de infans imposto e reivindicando a fala.
Penso que parte central da criação da consciência feminista é o ato de falar, como Lélia Gonzalez ensina, “com todas as suas implicações”. É preciso criar novas ferramentas, novas pesquisas, novos espaços de estudos e uma nova linguagem que seja genuinamente mulheril, recusando as amarras patriarcais vigentes e fazendo um movimento consciente de direcionar o olhar para as mulheres, seus vestígios e suas falas escondidas nas frestas da história.
Audre Lorde é categórica em sua análise:
“E quando as palavras das mulheres clamam por serem ouvidas, cada uma de nós deve reconhecer sua responsabilidade de tirar essas palavras para fora, lê-las, compartilhá-las e examiná-las em sua pertinência à vida”.
Recados
No dia 27/03, o Olhar à Veras podcast estará de volta! Em nossa quinta temporada, teremos episódios quinzenais. O primeiro do mês será uma entrevista com alguma mulher feminista que trabalha ou pesquisa com temas correlatos a nossa vida, memória e história. O segundo será um episódio individual feito por mim. Acompanhe no Spotify e não perca nenhuma novidade.
Neste mês, as mulheres do Insubordinadas lerão “E eu não sou uma mulher?” de bell hooks. Sei que muitas mulheres desejavam ter entreado no Clube e não foi possível, por isso, estou considerando abrir algumas (poucas) vagas extras para a participação no Clube. Para saber mais, acompanhe meu instagram (@manoelaveras) e a conta do próprio Insubordinadas (@insubordinadas.cl).
Até a próxima quinzena, mulheres. Obrigada pela leitura sempre gentil e atenta.
o “Scott” do título do prêmio advém de Anne Firor Scott, outra historiadora das mulheres de relevância nos Estados Unidos. Descubra mais sobre sua trajetória e trabalho no link: https://www.neh.gov/about/awards/national-humanities-medals/anne-firor-scott.
Que reflexão, Manu! Mais uma! 👏👏👏👏 obrigada!